Por Thiago Rahal Mauro
Nos anos 80 e 90, a música era uma verdadeira paixão. Para quem cresceu nesse período, como eu, a música não era apenas algo que se ouvia, mas uma vivência. No caso do rock e do heavy metal, por exemplo, a experiência era quase mística. Lembro-me de quando comprei meu primeiro disco de CD de uma banda de heavy metal, e a sensação de ouvir aquele álbum inteiro, sem interrupções, sem a pressa que parece dominar os dias de hoje. Era um ritual, algo sagrado. A música, para nós, era uma forma de se conectar com o mundo e consigo mesmo.
Nos anos 80, o consumo de música tinha um caráter quase reverente. Não havia a correria de hoje, nem as interrupções constantes que temos em nossos celulares. O som vinha de fitas cassete, Vinil ou das rádios, mas havia um cuidado em escolher o que se ouvir. A relação com as bandas e seus álbuns era profunda, um compromisso de se entregar ao som. Era como se, ao ouvir um disco do Metallica ou do Iron Maiden, estivéssemos em uma busca de autoconhecimento. A conexão com a música era muito mais próxima e direta, sem distrações.
Nos anos 90, a música ainda era uma das principais formas de lazer e expressão pessoal. No entanto, foi nesse período que o cenário começou a mudar. A chegada da internet e o surgimento das primeiras plataformas de compartilhamento de músicas transformaram o mercado musical. A música se tornou mais acessível, mas também mais fragmentada. As pessoas começaram a ouvir de forma mais dispersa, pulando de uma canção para outra, sem o mesmo comprometimento de antes. Embora a era do CD tivesse começado a consolidar-se, a forma de consumir música estava em processo de mutação.
E aí, chegamos aos dias de hoje, onde o consumo de música parece estar mais disperso do que nunca. Em plataformas como Spotify, YouTube e outras, a facilidade de acesso e a imensidão de opções tornam difícil manter a atenção em algo por muito tempo. Ouço muitos amigos dizendo que não têm paciência para ouvir um álbum inteiro. A tendência é consumir músicas individualmente, como se fosse um passatempo, sem realmente absorver a proposta da obra completa. O foco na música e no seu contexto desapareceu, e isso é algo que me preocupa.
Na Grécia Antiga, filósofos como Aristóteles e Platão já discutiam a importância da música para o desenvolvimento humano e a necessidade de equilíbrio nas atividades cotidianas. Aristóteles acreditava que a música tinha o poder de transformar o caráter e a alma das pessoas, sendo, portanto, essencial para a educação e o bem-estar. Para ele, a música era um meio de atingir a harmonia, o equilíbrio, que é tão essencial para a vida. “A música é o princípio de todos os encantos da vida.”, disse Aristóteles em sua obra A Política.
Platão, por sua vez, via a música como um meio de fortalecer a moralidade e a virtude. Ele acreditava que a harmonia musical podia moldar o caráter das pessoas, e que o cultivo da música deveria ser uma prioridade. Em sua obra República, Platão escreve: “A educação musical é a parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a”. Se ele estivesse vivo hoje, provavelmente ficaria perplexo com a forma como consumimos música de maneira tão rápida e impessoal. A música, que deveria ser uma forma de reflexão e transcendência, tornou-se algo descartável, ou apenas um pano de fundo para nossas rotinas atarefadas.
Eu mesmo me pergunto: o que aconteceu com aquele compromisso com a música? O que aconteceu com aquelas tardes de puro deleite, ouvindo o novo disco da minha banda favorita, em que a música era mais importante do que qualquer outra coisa? O avanço tecnológico, claro, trouxe muitas facilidades, mas também nos afastou do foco. Hoje, ao invés de sentar para ouvir um álbum inteiro, muitas vezes estamos fazendo várias coisas ao mesmo tempo. A música virou uma companhia para o nosso dia a dia, mas não mais a prioridade que ela foi um dia.
Refletindo sobre isso, percebo que a verdadeira arte da música está em sua capacidade de nos envolver, de nos fazer esquecer do resto do mundo, como naqueles tempos passados. A música nos oferece uma experiência única de imersão, e isso, de certa forma, é um antídoto contra a superficialidade do nosso tempo. Não precisamos voltar àqueles tempos, mas talvez possamos aprender algo com eles: a importância de reservar um tempo para a música, para a arte, para aquilo que realmente nos toca no fundo da alma.
Na filosofia estóica, particularmente em Epicteto, encontramos uma lição importante sobre a atenção e o foco. Ele diz: “Não são as coisas que nos perturbam, mas a opinião que temos sobre elas.” Talvez a nossa falta de foco na música hoje seja justamente uma consequência das nossas opiniões e hábitos modernos, que nos distraem e tornam difícil nos concentrarmos no que realmente importa. A música, que poderia ser um meio de transcendência, muitas vezes se perde entre a pressa e a dispersão do nosso dia a dia.
Talvez, se tivéssemos mais tempo para realmente ouvir as músicas que amamos, se nos permitissemos ser levados pela harmonia e pelos acordes, poderíamos redescobrir o poder transformador da música. Como diz Aristóteles, a música tem o poder de moldar nossas almas. Mas, para que isso aconteça, precisamos voltar a ouvir com atenção, a escutar com o coração, e não apenas com os ouvidos. Isso exigirá, claro, uma mudança de postura em relação ao nosso tempo e nossas prioridades.
Portanto, quando a música deixou de ser prioridade? Talvez tenha sido quando deixamos de ouvir com atenção, quando substituímos a experiência imersiva pela pressa de consumir, quando perdemos o foco. A música continua a nos chamar, mas cabe a nós decidir se vamos responder com a mesma intensidade de antes, ou se vamos continuar vivendo em um ritmo frenético, onde as prioridades são muitas, e a música se tornou apenas mais uma distração.
Hoje, mais do que nunca, precisamos fazer uma escolha: dedicar tempo para realmente ouvir música e sentir sua transformação ou continuar com a distração constante que a vida moderna nos impõe. Platão e Aristóteles já nos alertavam sobre o impacto da música em nossas vidas. Talvez seja hora de retomar essa sabedoria e redescobrir a música como uma forma essencial de conexão e equilíbrio.